Foi por uma manhã fria de Novembro. Sentava-me à mesa da confeitaria quando uma vozita de criança surgiu: «senhor, compra pensos para as feridas». E depois: «senhor, uma moeda para comprar pão».
- «Eu compro – disse-lhe». E ela: «senhor, pede para pôr manteiga no pão». Pedi pão com manteiga e leite, e convidei-a sentar-se à minha mesa. A menina tomou o leite, mas guardou o pão na sacola que trazia. «O pão é para o meu irmãozito que está em casa com fome».
De repente, lembrei-me de a ter visto há muito tempo. Sempre junto aos semáforos, olhos pretos muito vivos e pele morena teria uns sete, oito anos. Saltitava com os pensos rápidos na mão, quando “pintava” o vermelho. Os carros partiam, e a menina baixava os olhos tristes. Um dia dei-lhe uma moeda de dois euros. Quis entregar-me os pensos e o troco. Que ficasse com as duas coisas – disse-lhe. Recebi em troca o mais luminoso sorriso de toda a minha vida.
Que agora já sabe ler e escrever - confidenciou-me. E já tinha escrito uma carta ao presidente, mas não tinha portador. «Dá-me a carta que eu levo-a». - «O senhor é carteiro?» - «Tenho alguma apetência para a função» – respondi-lhe, estribado no diagnóstico que há dias me fez o amigo Queirós.
E lá tirou a menina da sacola uma folha A4, dobrada em quatro: era a carta.
Traslado-a sem lhe tirar, nem acrescentar uma vírgula.
«Chamo-me Raquel tenho 11 anos vivo em Matosinhos e escrevi o ano passado uma carta ao senhor presidente escrevi-a tão devagarinho para a letra ficar bonita reli-a tantas vezes para não cometer erros se algum escapou peço desculpa mas não pude ir a todas as aulas porque tinha de cuidar dos meus 3 irmãozitos, o Xico com 5 aninhos o Adão com 3 e a Juca com 2 o meu pai estava na cadeia a minha mãe desempregada e a minha irmã mais velha a Vanessa com 18 anos só chegava a casa ao ser dia dizia que andava a vender o corpo isso eu não percebia porque ela chegava a casa com o corpo todo. Porque não me respondeu o senhor presidente não sei pergunto se recebeu a minha carta porque não a leu e se a leu porque não respondeu eu só pedia uma roupinha para cobrir o Xico que anda a tremer de frio umas sapatilhas para o Adão e uma tigela com desenhos de flores para a Juca comer a sopa que eu lhe faço com água e aparas de carne que me dá o senhor Antero do talho quando os cães se atrasam que as aparas são para quem chega primeiro e às vezes são os cães e para mim queria só uns chinelos para trocar por estes que já foram botas.
O senhor Antero que é um homem muito rico e gordo às vezes também me dá uma moeda para eu ir comprar chocolate para mim para o Xico para o Adão e para a Juca quando quer ficar sozinho com a minha mãe na rulote onde moramos desde que fomos despejados e diz para entrarmos só quando a rulote parar de baloiçar e nós ficamos cá fora os quatro até que a rulote pare de baloiçar então já podemos entrar só não entendo como podem eles gostar mais de baloiçar a rulote do que de chocolate.
Se desta vez a carta chegar ao senhor presidente peço-lhe que se lembre também dos outros meninos e dos seus pais e avós aqui do bairro que não têm emprego nem reforma que se veja e também passam fome e desejo muita saúde para si e para os seus amigos ricos».
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
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Confesso que esta carta me arrancou na primeira parte lágrimas, na segunda sorrisos.
ResponderEliminarQuando um texto desperta em nós estes sentimentos quer dizer muito.
Gostei sinceramente de a ler.
Fico à espera de mais. Parabéns.
Parabéns. Espero que não falte muito para o livro... o prometido é devido!
ResponderEliminarCaríssimo cvnorama,
ResponderEliminarO livro há muito que está pronto. Morreu na praia.
Hoje, e face ao resultado eleitoral em Matosinhos perdeu interesse.
Outras oportunidades surgirão.