Enquanto os rapazes do seu tempo se estreavam no bosque de Santa Luzia com a Picolina - mulher de muitas relações, descontos para estudantes e militares - Narciso pescava noutras águas. O episódio anterior dava conta duma namoradinha, a Celeste (nome fictício). Mas, como a terá conhecido? Podia muito bem ter sido da forma que se acha escrita no livro. Assim:
«…Celeste na sua cadeira, rainhas as outras, rindo e dançando. Só de longe em longe, e porque sobravam os homens, lá vinha um, Celeste num alvoroço, ele frio e desgostado como quem compra os últimos carapaus da canastra onde já todos escolheram. Celeste encostando-se, desejosa de compensar, de pagar com prazeres a graça de um tango, de incitar a novos convites, Celeste magra e desengraçada, mas terna, a dar-se, eles ausentes, dançando, dançando só, com a orquestra, não com ela, Celeste apenas bengala de caminheiros do baile. Naquela noite apareceu o Narciso. Nunca o tinham visto ali, seria de outra terra, talvez, Vila Fria, Neves ou Barroselas, estatura meã, olhos castanhos, calças de ganga, camisa clara. «Quem é? Quem é?», perguntavam-se umas às outras, excitadas pela presença da cara nova, para mais bonita, ajeitavam os cabelos, faziam poses, as mais atrevidas sorriam-lhe de longe e mostravam as bolas dos joelhos. A expectativa cresceu quando a orquestra – Rio Lima Dancing, Janita ao piano, Teodósio contrabaixo, Camilo no saxofone, Zé António e seu acordeão, Luciano vocalista acumulando os ferrinhos – lançou para a pista os primeiros acordes da Valsa do Imperador. As moças, expostas em duas filas de cadeiras à volta da sala, ficaram aguardando o que lhes caberia em sorte, mas iam-se-lhes os olhos e a curiosidade na figura do desconhecido, marinheiro de primeira viagem à Sociedade Musical e Recreativa Darquense, cinco escudos de cota, os bailes mais animados da região. Acanhado não era ele. Ainda Camilo não gastara o primeiro fôlego no saxofone ei-lo que avança pela sala nua, tudo suspenso do seu passo ágil, até os rapazes parados, a dar a vez, Narciso caminhando, de uma ponta à outra, até dobrar-se em frente de Celeste, e perguntar humilde, quase em súplica: «Quer dançar comigo?». - «Eu» - Celeste não esperava uma daquelas, era a coisa mais bonita que alguma vez lhe acontecera, as outras morrendo de inveja, levantou-se e volteou nos braços daquele estrangeiro, príncipe encantado que vinha redimi-la de mil humilhações. Rodopiavam sós no centro do mundo, durante minutos, ou seriam horas, tempo de maravilha, todos a olhar, suspensos, esquecidos da dança, duas filas de Celestes em banhos de cadeira, Celeste rainha, a mais bela de todas, a única, a eleita. «Como te chamas?» - «Eu, Celeste, E tu?» - «Narciso.» Palavras ciciadas nas voltas da valsa, agora era um bolero, o braço de Narciso firmou-se mais na cintura delgada, apertou-a contra si, nem era preciso, Celeste já lá ia, feliz. Quando a orquestra se calou, Narciso foi levá-la ao seu lugar, disse «muito obrigado» e sumiu. As outras olhavam Celeste surpresas e enciumadas, ela segurando um botão do vestido, fazendo-se ocupada para esconder felicidade tão grande. Voltaria? Não, por certo não, agora iria dançar com outras. Aí estava a orquestra de novo, na alegria irónica de um paso-doble, Celeste entristecendo, Narciso a chegar à sala, quem seria agora, talvez a Isabel, de todas a mais bela, representante da Sociedade num concurso de misses. Isabel também à espera, orgulho ferido. Narciso levantou os olhos e sorriu, sorriu para Celeste, ai Nossa Senhora, rezou ela, Narciso perguntava-lhe, de longe, rodopiando um dedo apontando para o chão, se queria dançar…».
domingo, 4 de outubro de 2009
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Gosto do conteúdo, mas sobretudo da forma.
ResponderEliminarTalento e irreverência, mordacidade e humor.
Parabéns. Assim sim. Vale a pena contiunar!
Este Pedro Sousa é um espectaculo.
ResponderEliminartemos homem para Leça da Palmeira
Considero das mais elegantes e agradáveis formas de escrita.
ResponderEliminarEsta consulta foi-me sugerida por um amigo comum.
Reconheço-lhe valor e aqui fico à espera de mais.